Microexpressões faciais não é ciência. E quem a leva a sério é um farsante.

 

O estudo das microexpressões faciais tem sido objeto de muita controvérsia nos últimos anos. Alguns afirmam que essa ciência é fraca e obsoleta, enquanto outros defendem sua importância para a compreensão das emoções humanas. As microexpressões faciais são pequenos movimentos musculares involuntários que ocorrem na face e que podem ser usados para indicar uma emoção específica. 

ORIGEM DOS ESTUDOS DA LINGUAGEM CORPORAL

No século XIX, a história dos estudos sobre linguagem corporal teve início com a publicação do livro "A expressão das emoções no homem e nos animais" por Charles Darwin em 1872. Utilizando observações próprias e correspondência com colegas, Darwin concluiu que a semelhança nas expressões e gritos de humanos e animais em determinadas situações, como alegria, afeto, carinho, dor e medo, resulta da herança de caracteres adquiridos pelo uso e desuso a partir de um ancestral comum e seleção natural. Essa conclusão está relacionada à sua teoria da evolução apresentada em sua obra seminal, "A origem das espécies", publicada em 1859.

Albert Mehrabian

Após ter sido amplamente ignorado por cerca de cem anos, o estudo da linguagem corporal foi retomado durante o "boom" dos estudos de psicologia e comportamento humano nos anos 60 e 70. Nessa época, Albert Mehrabian (1939-) e seus colegas da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) realizaram duas experiências para avaliar a interpretação das intenções por trás das palavras pronunciadas em três tons de voz diferentes (neutro, positivo e negativo) ou associadas a expressões faciais consistentes ou inconsistentes com seu significado. Combinando os resultados desses experimentos e outros em sua área, Mehrabian observou que apenas 7% da interpretação foi baseada nas palavras ditas em si, enquanto 38% das respostas levaram em consideração principalmente o tom usado e impressionantes 55%, a expressão facial associada. Essa equação foi publicada em seu livro intitulado "Silent Messages" em 1971. No entanto, a mídia generalista noticiou equivocadamente que 93% da comunicação humana provinha de componentes não-verbais, o que não é verdadeiro, visto que, se assim fosse, não haveria necessidade de legendas em filmes e aprender uma língua estrangeira seria um exercício puramente literário. Em um comentário posterior à publicação de seu livro, Mehrabian escreveu: "Por favor, observe que esta e outras equações sobre a importância relativa das mensagens verbais e não verbais são derivadas de experimentos relacionados à comunicação de sentimentos e atitudes (por exemplo, gostar ou não gostar). A menos que o emissor esteja falando sobre seus sentimentos ou atitudes, essas equações não são aplicáveis".

A GANÂNCIA DE PAUL EKMAN

Paul Ekman

Apesar disso, o mito da predominância da comunicação não-verbal continuou a crescer e se espalhar. Isso nos leva a outro nome frequentemente mencionado nessa área, o psicólogo americano Paul Ekman (1934-). A partir dos anos 60, Ekman iniciou estudos na área, analisando como gestos e expressões variam ou não entre culturas e, posteriormente, focando exclusivamente no que ele identificou como "microexpressões faciais", que seriam indicativos universais e inconscientes de emoções e estados mentais.

Sistema de Codificação de Ação Facial.

Com base em seus estudos, Ekman criou o que ele chamou de Sistema de Codificação de Ação Facial nos anos 70. O sistema, conhecido pela sigla em inglês FACS, é frequentemente descrito como uma "taxonomia" de todos os possíveis movimentos observáveis dos músculos faciais, denominados "unidades de ação" (AU), cujas combinações e intensidade podem, supostamente, ser associadas a emoções ou estados mentais específicos de forma universal, ou seja, para diferentes culturas e etnias.

E aí começam os problemas. 

Com base no FACS, surgiram manuais, cursos e outros produtos que supostamente permitiriam a qualquer pessoa aprender a interpretar sinais sutis e identificar mentiras ou outras intenções ocultas de seus interlocutores. Após o sucesso de seu livro "Telling Lies: Clues to Deceit in the Marketplace, Politics, and Marriage" ("Detectando mentiras: pistas do engano nos negócios, na política e no casamento", em tradução livre), originalmente publicado em 1985, Ekman passou a treinar forças policiais, de segurança e de inteligência dos EUA, como a CIA e o FBI.

Série de TV: Lie To Me (Engana-me se Puder) - inicio do primeiro episódio 

O trabalho de Ekman também foi fonte de inspiração para a premiada série de TV "Lie to Me", transmitida entre 2009 e 2011, na qual o personagem principal, o Dr. Cal Lightman (interpretado pelo ator britânico Tim Roth, de filmes como "Cães de Aluguel" e "Pulp Fiction"), é apresentado como um detector de mentiras ambulante capaz de identificar e interpretar com precisão os sinais sutis da comunicação não verbal. Ekman atuou como consultor científico da série.

Com o passar dos anos, no entanto, Paul Ekman decidiu expandir seu treinamento para além das forças policiais e de segurança, e em 2009, após se aposentar como professor da Universidade da Califórnia em San Francisco, criou o Paul Ekman Group (PEG) e a Paul Ekman International (PEI). Por meio dessas empresas, ele oferece cursos online, palestras e workshops relacionados ao seu sistema, além de oferecer "certificações" correspondentes por algumas centenas de dólares, disponíveis ao público em geral.

ESTUDOS REFUTAM MICROEXPRESSÕES FACIAIS

Accuracy of Deception Judgments, o trabalho pode ser lido aqui.

Nos últimos anos, vários estudos têm mostrado que mesmo profissionais experientes em linguagem corporal, como agentes de segurança, não são capazes de identificar mentirosos com mais precisão do que pessoas comuns ou até mesmo por acaso. Esses estudos têm derrubado muitos mitos sobre a detecção de mentiras através de sinais não-verbais, como o mito de que os mentirosos olham para a direita quando inventam suas histórias. Por exemplo, uma ampla revisão de pesquisas publicada em 2006 no periódico Personality and Social Psychology Review por Charles F. Bond Jr. e Bella M. DePaulo analisou mais de 200 estudos envolvendo quase 25 mil pessoas e descobriu que, em média, elas conseguiram identificar corretamente pares verdade-mentira em apenas 54% das vezes. Os melhores indicadores de mentiras eram verbais, com os mentirosos menos inclinados a falar abertamente e responder perguntas, não entrando em detalhes, demorando a responder e falando mais lentamente. Mais recentemente, uma extensa revisão da literatura científica sobre o assunto apontou grandes lacunas e contradições nos estudos na área. Seus autores alertam que existem muitas teorias, mas nenhuma delas parece capturar completamente a relação entre a comunicação não-verbal e a mentira. Além disso, os detectores de mentiras não são tão bons em ler pessoas quanto pensam e têm fortes crenças equivocadas quanto aos sinais não-verbais da mentira. Eles afirmam que os mentirosos que contam suas histórias em situações em que a comunicação não-verbal é crucial são surpreendentemente ignorados, enquanto o foco das pesquisas se dá em mentirosos que agem em situações em que a comunicação não-verbal é menos importante. Os autores também apontam que os detectores de mentiras se mostram ativos em dizer uns aos outros que seu método de detecção de mentiras funciona, sem fornecer evidências que apoiem essas alegações.

E assim, embora o FACS e derivados possam ter rendido uma boa série de televisão, à falta de evidências não passam disso, isto é, pura ficção. E se uma pessoa vier lhe dizer ser capaz de detectar um mentiroso com base na linguagem corporal, saiba que quem já começou mentindo foi ela mesma.

NOSSAS EXPRESSÕES FACIAIS NÃO REFLETEM NOSSOS SENTIMENTOS 

Enquanto realizava pesquisas sobre emoções e expressões faciais na Papua Nova Guiné em 2015, o psicólogo Carlos Crivelli descobriu algo surpreendente. Ele mostrou aos habitantes da ilha de Trobriand fotografias do típico semblante ocidental do medo – olhos arregalados e boca aberta – e pediu que identificassem o que viam. Os trobriandeses não perceberam um rosto assustado. Em vez disso, interpretaram a fisionomia como indicação de ameaça e agressão. Em outras palavras, o que entendemos como uma expressão universal de medo não é universal. Mas se os trobriandeses têm uma interpretação diferente das expressões faciais, o que isso significa? Uma teoria que vem ganhando força – e tem cada vez mais adeptos – é de que as expressões faciais não refletem nossos sentimentos. Em vez de leituras confiáveis de nossos estados emocionais, elas mostram, na verdade, nossas intenções e objetivos sociais. Nele, os especialistas defendem uma visão mais utilitária das expressões faciais. Isso não quer dizer que nós tentamos ativamente manipular os outros com nossas expressões faciais (embora de vez em quando possamos fazer isso). Sorrir e franzir as sobrancelhas podem ser reações instintivas. Mas nossas expressões são menos um espelho do que está acontecendo dentro de nós do que um sinal que estamos enviando sobre o que queremos que aconteça em seguida.

A cientista Gabriela Bailas, do canal Física e Afins, no vídeo intitulado "Microexpressões Faciais e Paul Ekman: ciência fraca e obsoleta" expõe a farsa dessa pseudociência.  

O site Universo Racionalista fez um interessante resumo sobre isso: Não há um método comprovadamente eficaz para determinar se alguém está mentindo ou não, apenas pela observação do comportamento verbal ou não verbal. É necessário interagir com a pessoa em questão e interrogá-la repetidamente sobre os detalhes do evento em questão. Aqueles que mentem tendem a fornecer descrições e narrativas com menos detalhes e mais contradições do que aqueles que falam a verdade, provavelmente devido a problemas de sobrecarga cognitiva. As microexpressões são pouco frequentes e podem ser controladas, portanto, devem ser totalmente descartadas. A ideia de usar um método com multicanais não faz sentido, pois métodos como o SCAnS, que se concentram nas expressões faciais, incluindo microexpressões, não são confiáveis e não foram adequadamente testados. Esses métodos se tornaram um negócio muito lucrativo e aqueles que estão envolvidos tendem a se agarrar a eles devido ao dinheiro envolvido.

Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-44285496
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2021/12/24/pega-na-mentira-os-mitos-da-linguagem-corporal
https://universoracionalista.org/a-pratica-pseudocientifica-de-paul-ekman-e-seus-seguidores/
https://journals.sagepub.com/doi/10.1207/s15327957pspr1003_2

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